28 dezembro 2006



como vou escrever
sobre a tua ausência
mostrar-te cada poro em falta
do teu hálito nocturno
destrinçar a minha carne da tua
Foto: Maria Pragana

26 dezembro 2006

é de noite em todas as janelas
dos dias desligados com a tv
quando já cansa o cansaço
e murcham as asas do desejo
tranco o dia seguinte
do lado de fora do estore
cativo a realidade
por trás das pálpebras
e nada mais conta

25 dezembro 2006

sem vírgulas na língua

despertas em mim
canibalísticos desejos
quisera engolir-te
sem tirar as penas
quisera servir-me
sem cerimónias

por trás das pálpebras
vejo-me atravessando
o umbral da tua garganta
centripetamente rumando
às paredes do teu umbigo


estrelas líquidas
escorrem-me pelo peito
já nasceu o menino
rasgou-me na saída
esgotada a salvação
amontoam-se-me os dias
sem juízos
sem final
Foto: Maria Pragana

20 dezembro 2006

Dzzz... Paff.

Aos mosquitos, não lhes tenho medo.
Que me salivem em roda dos ouvidos,
que bebam do meu sangue até rebentar!
Quão superficiais são as suas picadas,
quão ridiculamente murchas as suas trompas...

19 dezembro 2006

Intangível

Porque rodopias na minha imaginação?
Porque habitas concentricamente a minha carne?
Porque te desejo.

18 dezembro 2006

saudade


lembra-me a minha pele
que eu, esquecer procuro:
o correr dos teus dedos,
o baralhar de posses
na confusão das línguas,
a leveza do teu peso
ao virar o dentro do avesso

11 dezembro 2006


em prados de linho branco
quisera ordenhar-te
sob céus de pura lã
cavalgar-te

03 dezembro 2006

da gaveta 4

perdoa a língua ácida lambendo
os tímpanos, as vísceras expostas
no despudor do desespero a saliva
áspera
desdobrando os vincos da carne viva
o hálito rebentando

as distâncias mal cosidas

da gaveta 3

o príncipe
desencantado beija
a face distraída e branca
da princesa salgada
a abóbora ao lume
a varinha mágica
triturando o encanto
o espesso esturro na mesa
final indigesto
de indecentes fadas
dorme o infante
de negro o fado
vigia os sonhos
e tudo mais uma vez

da gaveta 2

no viver trémulo
aquando das cinzas
da rosa intacta
as nuvens sem pressa
num gesticular baço
ao perecer das horas
o sorriso suspenso
por trás do chá
a tarde desmanchada
o voo entrecortado
a demora exacta
na latitude nevrálgica

o salto intenso

da gaveta 1

torço
o pano impotente
em pingos exaustos
continuo
a tarefa cega
higiénica existência
alma (a)céptica
desinfecto
a superfície sulcada
preparo
a pele de galinha
o arrepio gritado
e o ventre inchando-me
quase a rebentar
de existência
de inoportuna volúpia

28 outubro 2006


a noite desenrolando-se
do lado de fora
da minha janela
e do lado de dentro
dos meus olhos
imagino como será
a luz da manhã
na pele branca e nua
dos teus braços
que ritmo terá
o teu peito
que calor emanará
do teu corpo
que sem conhecer
já amo



Morgensonne, 1952, Edward Hopper

15 outubro 2006

Guilty *











Is it a sin
Is it a crime
Loving you dear like I do
If it’s a crime than I’m guilty
Guilty of loving you
Maybe I’m wrong
Dreaming of you
Dreaming a lonely night through
If it’s a crime than I’m guilty
Guilty of dreaming of you
What can I do
What can I say
After I’ve taken the blame
You say you’re through
You’ll go your way
But I’ll always feel just the same
Maybe I’m right
Maybe I’m wrong
Loving you dear like I do
If it’s a crime than I’m guilty
Guilty of loving you


* G. Khan / R. A. Whiting - H. Askt
Songwriters Guild
1931 EMI

29 setembro 2006

No mar









explodem arco-íris
nas saias das ondas
sobre as rochas
quase eternas
despeço-me
do teu efémero abraço
e o sal que provo
já não sei
se é dos olhos a verem o mar
se do mar nos meus olhos

20 setembro 2006

como uma canção

de repente numa canção
as palavras os sons
ganham corpo e surpreendem-me
sob a tua forma
pois que te conheço
ouvindo-te e lendo-te
e é como uma canção trauteada
pelos caminhos do quotidiano labirinto
que quero que me acompanhes
pairando sobre os meus dias
habitando-me por dentro
ainda que distante
acedendo ao centro de mim
como o ar que me percorre

09 agosto 2006

O Teu Nome

"Ignorez-vous ce que signifie le besoin de nommer certaines personnes? (...) Si on éprouve au fond de soi le désir d'invoquer le nom d'un individu, c'est qu'on l'aime."*

invoco o teu nome
para te fazer presente
para que ao menos o ar
sob a forma do teu nome
me encha por dentro
aquietando-me a saudade

*Prétextat Tach in HYGIÈNE DE L'ASSASSIN par Amélie Nothomb

27 julho 2006

Num Agosto já Ido

porque se ausentou
a tua mão da minha
se no meu olhar
não havia sombras
se no meu peito
mora a esperança
de uma alma clara
se voando no infinito
azul claro do teu olhar
eu vi aves de asas brancas
suas breves pegadas
ainda na minha memória
traçando um rumo
que eu desejara tomar
no cais da madrugada
o vento sopra salgado
meus olhos no horizonte
procuram o fio azul
que tece o teu olhar
aqui longe do mar
sinto a distância
que talvez nunca sare
se lanço palavras
como uma mensagem no mar
é porque nessas águas procuro
a ilha onde a minha espera
pudesse se aquietar

22 julho 2006

Sleeps with Butterflies *

I used to feel butterfly wings
flapping around me
it's smooth touch on my skin
now they've flown away
along with my dreams
boy

* The Beekeeper - Tori Amos

04 julho 2006

Sonhos

porque é que sempre
que um hálito morno
roça a minha pele
o vento sopra frio
gelando na noite
as raízes dos sonhos
forçando à itinerância

os sentimentos

02 julho 2006

E agora?

costas com costas
à medida que nos afastávamos
desdobrava-se diante de nós
um chão de incógnitas
e de pele macia
quem mais sentia
as asperezas do caminho
era o mais pequeno dos três
o mais indefeso
o mais confuso
dói-me que tropece
nos nossos passos
tão desprotegido caminhante
mas era impossível continuarmos
eu dizendo esquerdo
de cada vez que dizias direito
os nossos percursos
abismalmente separados
já nem o eco do teu andar
conseguia escutar
peço-te apenas
que deixes intactos
os trilhos que percorremos juntos
a terra que fundámos
e que recebeu os nossos nomes

Foto: Henri Cartier-Bresson (pormenor)

02 junho 2006

pelas ruas, pelas avenidas
pelos becos, pelos caminhos
ando perdendo-me
à procura de me encontrar
quero a solidão
imensa dos meus passos
o ritmo descompassado
do meu peito
o meu corpo somente
entre o sol e o chão
hei-de construir cabanas
sonhar palácios
fazer um ninho no meu peito
e serei soberana do meu reino

25 maio 2006

Quem?...

quem ainda lança
sementes à terra
quem espera
que elas cresçam
quem sabe
o que uma semente
contém

quem tem alma
de lavrador
para os meus campos
arar
quem anda
de pés descalços
sulcando a terra
com os seus passos
fechando os braços
para que as aves
possam pousar

quem tem unhas
que guardam pedaços
de terra fértil
quem tem mãos
gretadas por sementes
acarinhar

quem se levanta
mal rompe a aurora
inundado de espera
a crescer no peito
até brotar
num mar de espigas
sementes do pão

Christian Voltz in Ainda Nada?, Kalandraka

13 maio 2006

"- Por favor... cativa-me!" *






"(...) Se tu me cativares (...) passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, eu também passo a ser única no mundo..." *


"O Principezinho" - A. de Saint-Exupéry





Le Tombeau des Luteurs, Rene Magritte

05 maio 2006

Saltar de braços / Soltar de braços

deixa que abra a porta e rasgue horizontes
onde os beijos são líquidos e resvalam
na pele acicatada pelo sol
deixa-me mergulhar para fora
do teu corpo apinhado, recuperar
os contornos da minha própria silhueta confundida
com as flores do papel das paredes
do teu quarto, saltar em voo indiscreto
para os braços dos transeuntes



Rooms by the Sea, 1955, Edward hopper

03 maio 2006

Weaver

weaver, weaver
where's your thread gone
when did you start
bending your fingers
trying to hold
what was thiner than air
no cotton, no linen
sliding through your hands
forgotten how silk feels like
just my skin against my skin
feels salty on my mouth
I guess some words
make ugly patterns
that's all

02 maio 2006

Beijo

procuro na tua boca palavras
que me digam a que sabem os meus beijos
se é fértil a minha saliva
se desenha auroras no teu peito
e da tua boca escorre o silêncio
esvaem-se os beijos com o amanhecer
adormecido o desejo desvanecem-se os contornos
do meu corpo sobre o teu


O Beijo (Pimento nº 30, by Edward Weston)

29 abril 2006

Missing you

turning, turning
your words inside out
trying to find you
behind them
missing your eyes
missing the line
of your lips
dreaming the touch
of your hands
will they burn
sweet and firm
why does time
slow down
when you're not around

27 abril 2006

From a mouth of a girl like me to a boy *


a janela aberta sobre a cidade
todas as ruas todas as moradas
espraiando-se
um mar de possibilidades
se passásse um eléctrico
sei que iria entrar nele
apear-me em tua casa
dar-te um beijo
ficar o instante de um abraço


sentir a vida que pulsa em mim
desde que é primavera
desde que sou silvestre

e cresço sem cuidados
tenho pétalas em chamas
perfume como um presente
sentar-me a teu lado
no eléctrico dos desejos
saber que partir contigo
é regressar um pouco mais
à minha própria casa
chamar-te sem medo
o eterno nome dos amantes

Foto: Lisboa: Eléctrico, Gianfranco Iannuzzi


*Bjork - Vespertine - "Cocoon"

26 abril 2006

Life at the palm of my hand


maybe
the time's come
to look at you
and wonder
wether you want
to walk along
by my side
showing me the view
from your window
while I tell you
tales from mine

Foto: Maria Pragana
http://everythingtori.com/go/galleries/view/546/1/458/albums

25 abril 2006

O teu nome

vejo o teu nome
e descubro
que já está inscrito
ao de leve
sobre a minha pele
a tinta de luz
banha suave
o meu corpo
com o perfume
de palavras trocadas

23 abril 2006

É hoje o dia que chega

é hoje o dia
quero a casa varrida
pelo sol e sim a
azáfama dos pássaros
pela manhã
a franqueza do pão
sobre alva toalha
verde por entre os telhados
pespontos de margaridas
na erva a preguiça
ronronante dos gatos
o vento morno na pele

21 abril 2006

Little earthquakes

do outro lado dos fios
uma incógnita
uma surpresa
a cada passo
dedos em câmara lenta
partilhando
ínfimos sobressaltos

19 abril 2006

She's been everybody else's girl, maybe one day she'll be her own*


ah, mais um cordão que devo cortar
tirar-te de dentro de mim
ainda que há muito te soubesse
distinto e distante
separar as moradas
já que há muito que as vistas
são diferentes
ficar à janela
a ver quem passa
tecendo novos cordões
percorrer novos labirintos
Penélope e Ariadne
esperar que algures
na ponta do fio
eu me encontre


*"Girl" - Little Earthquakes - Tori Amos

Person at the Window, Salvador Dali

12 abril 2006

Em Buarcos rochas como barcos (para T.)

e duma rocha fizémos um barco
e navegámos no alto mar
passaram-se segundos
passaram-se anos
aventurámo-nos nos sete mares
descobrimos tesouros
guardados dentro de nós
e em cada pegada na areia
reluziam grãos de oiro
do tempo que sonhámos juntos

Visão cor-de-rosa sobre o asfalto negro

sobre o asfalto, regorgitando quilómetros
olho descrente a paisagem, a chuva
monotonamente descaindo pelo pára-brisas
deixo para trás auto-estradas de possibilidades
enveredo pelo mesmo velho beco sem saída

na moldura da janela de repente
um homem e uma mulher numa mota
debaixo da chuva que se entranha
rasgando o vento com o corpo
um ninho num bolso dum blusão
onde ele guarda no calor da mão
a mão da mulher que viaja com ele
e nesse instante pergunto-me
se não será isto o amor

09 abril 2006

Anikibabá, anikibobó


Anikibabá, anikibobó
Passarinho, totó
Cavaquinho, berimbau
Salomão, sacristão
Tu és polícia, tu és ladrão


se pudesse levantar uma pontinha que fosse
do véu, da pele, da carne
dos que perante meus olhos desfilam
descobrir que sonhos embalam no berço
que penas lavam a diário para que não enegreçam
vestir-lhes a pele a ver se caibo dentro
espreitar no telescópio as bordas dos seus universos

delete
poder supremo concentrado numa imbecil tecla
que sei eu do peso das suas existências

talvez devesse dar a todos o meu cartão
convidá-los para um grande banquete de sopa e pão


Foto: MGM Studios, 1939 by Edward Weston

Paixão - Páscoa




estendo o meu peito muito para além do alcance dos meus braços
quero que caibam nele todas as almas ímpares
ofereço-me, em paixão, à humanidade dos mil rostos
que olham para a janela de bytes onde me debruço
(atira as tranças! atira as tranças!)
digo-me mas é-me curto o cabelo



René Magritte

07 abril 2006

Eu sou o Homem Aranha

T. põe um ar sério de quem vai fazer a confidência da sua vida:
"Sabes, eu sou o Homem Aranha!"

Escondendo o fato, aquele que tem superpoderes, por baixo da roupa normal ele prepara-se para enfrentar vilões.
A cabeça de T. dá-me mais ou menos pelo umbigo. Quando ultrapassar, em tamanho, a minha própria cabeça, será que vai esconder a roupa normal por baixo da de algum musculado e todo poderoso super-herói? E quando descobrir que as roupas, além de tecidos, linhas, fechos e botões (o.k., e MARCAS, sedutoras, estonteantes MARCAS), não trazem mais nada; que é na nudez da alma que reside a força mas que é também nos lugares recônditos e sombrios, aterradores e magnéticos do coração humano que se escondem todos os nossos vilões, que lutas empreenderá? E estarei lá e poderei dizer, naquele tom de voz que só as mães têm, "pronto, não foi nada, já passou"?


Foto: Maria Pragana

06 abril 2006

I'm gonna make a mistake, I'm gonna do it on purpose*

vou deixar escorrer a minha seiva pelos circuitos electrónicos globais
vou afixar-me em todas as paredes cintilantes do mundo, vaguear por retina incerta
vou estender-me na rede, perder a virtude nos corredores virtuais
vou beijar as teclas como se fossem gente, fazer downloads de gente como se fossem teclas
vou acariciar a face do ecrã, vou clicar no teu rosto
vou escrever as letras da minha música, mesmo com erros
vou
voo


Jon J. Muth in The Mythology of an Abandoned City

*"A Mistake" - Fiona Apple - When the Pawn