23 dezembro 2008

desculpa lá se me preocupo
com as tuas dores na perna
e os maus-jeitos na alma
se sopro ao invés do lobo mau
construindo sem planos de engenharia
condomínios privados
com reserva de direito de admissão
a tudo o que fica para lá da cama
onde as cobertas
são impermeáveis aos dias úteis´
se são meus braços agulhas
com que tricoto carinhos
essa palavra piegas
tão cara a quem ama

04 dezembro 2008

mar de Leça

o mar? bebi-o da tua boca
cobria um espectro infinito de sabores
deitei-me na tua casa
como num areal macio
apanhei boleia em asas de aves
voei do centro aos limites de mim
tendo-te como garante
da viagem e da chegada

Campanhã

eram gaivotas para lá das linhas dos combóios
notas breves em pauta electrificada
oscilando entre um fundo de rio e telhados
eu invejando-lhes os horizontes leves
o movimento que desejara em direcção à foz da tua boca
onde por entre dentes e línguas te consumo líquido
por um amor de instintos canibais que me acomete

22 novembro 2008

Do fundo da gaveta - (1987)

Erra, erra, navegante
vai de porto em porto
buscando estrela que te guie
e em cada cais que atracares
não deixes de procurar nos bares
por entre nuvens de fumo
sonhos que nem tu próprio conheces

Deposita o teu desgosto
no fundo de um copo vazio
deambula pelas ruas
chamando com teu corpo gelado
um outro qualquer ardente
que num firme abraço iluda
a solidão que te povoa

Ó velho homem do mar
não há tempestade que temas
nem vento a que não faças frente
toma o leme, marinheiro
não deixes que o barco se perca
nesses mares sem fim

Manda no teu barco, capitão
leva-o para mar calmo
ancora-o em porto seguro
ou então deixa que vá à deriva
e parta como sempre faz
que sempre a terra vai dar

Ai, navegante, leva-me contigo
larga-me nas ondas doidas
que elas cuidarão de mim
não vês que tenho que partir
não reconheces os traços
de quem tem a alma instável?

Leva-me para lugares estranhos
não me faças perder tempo
que está na hora de zarpar
solta as amarras, faz-te ao mar
iça as velas e deixa-as
que inchem até rebentar

25 outubro 2008

Quimo



Estou de volta à circum-navegação cujas rotas tão bem conheço, paredes do meu próprio esófago em queda autofágica, em movimentos peristálticos que me amassam sem deglutir-me, sem conceder-me a dissolução. Pilosidades marcam-me na epiderme cada passagem como se picasse o ponto, assegurando-se da minha pertença aos quadros vitalícios, sem promoção nem despedimento. Quimo viscoso que a garganta regurgita para engolir de novo, que nenhuma ementa previu e que no entanto.

22 outubro 2008

Hoje encontrei no caminho uma carta de amor

Hoje encontrei no caminho uma carta de amor.
Deslizei o meu dedo, com cuidado, sob a dobra do envelope e após o rasgão, retirei a folha. Desdobrei-a, cerimonialmente, e pousei-a no colo, até ter coragem de a ler. E se fosse tua? E se me dissesse que o meu chamamento é simétrico ao teu?
Li-a. Recebi dos olhos carícias líquidas por cada palavra escrita. Era tua. Mas não era para mim.

07 outubro 2008

guarda a espada príncipe valente
seu gume não chega
para desmantelar torres
e cravar-se nas bestas
às quais estou presa
pela raíz dos cabelos
eu cesso meu canto de aflição
para que regresses a casa
ileso
já chegaram os dias da feira popular
tenho a casa cheia de espelhos
sou a mulher barbuda e o anão
cubro as paredes de algodão doce
avanço pelo túnel dos horrores
danço valsas com esqueletos
uma festa para os vizinhos
sem precisarem de bilhete
eu sei que não devia
fazer tranças com as tuas palavras
que ao proferi-las não as destináste
ao trabalho dos meus dedos
mas prometo deixá-las soltas
para que em querendo
possas pegar-lhes de volta
nenhuma das pombas pousadas
no meu telhado tem serventia
a nenhuma posso pôr no bico
o que me alimenta o pensamento
e mandá-la em serviço postal

04 outubro 2008

não é justo que se reavive em mim
a vontade de descansar a espera
nuns braços
foram meses liberta de desejos
e agora
quem olha não diz
que há um incêndio lavrando-me as entranhas
tenaz e manso
e o corpo ardido é ainda
teu território
devia coser meus olhos
para não te verem
queimar a língua
com chocolate quente
afogar os suspiros agridoces
receita a deixar para o chinês
e se algum lugar do meu corpo
chamar por ti
espargi-lo com água das pedras
tornar-me n. sra. sem remédio

24 setembro 2008

«À 1 eu nasci, às 2 me baptizei, às 3 pedi namoro»

Os pés, enfiados em sapatilhas, não chegam ao chão. As pernas, irrequietas, ora pendem, ora se dobram por baixo do corpo. Um dos braços sustenta a cabeça, enquanto o outro segura o garfo que entra na boca, de tempos a tempos, com comida. A boca, onde se exibem três dentes novos, está mais atenta a uma palavra do que ao comer.
Durante o jantar, T. repete continuamente: Beatriz.

23 setembro 2008

podia estar em qualquer cozinha
em rolo sobre o balcão
película não impressionada
resguardando nacos de carne no frigorífico
podiam seccionar-me com lâminas rolantes
até ficar o miolo à vista
até esgotar-se
a transparente existência

15 agosto 2008

Now, there's a white rabbit i'd gladly follow



Lewis Carroll's Alice's Adventures in Wonderland with illustration by Maggie Taylor
Modernbook Editions

http://www.maggietaylor.com

26 julho 2008

rasgão


custou-me muito cobrir os ossos
deixados descarnados quando
arrancáste o teu corpo do meu
e deixar-te entrar seria
oferecer o meu esqueleto
à nudez voraz da dor
e não posso

04 julho 2008

fim ao monopólio cardíaco

podia ser amo-te do fundo do pâncreas ou
despedaçaste-me o baço quando partiste
assim
desmanchando hierarquias de orgãos

22 junho 2008



agora era um amor que não veria
pela porta entreaberta da casa de banho
cujas cuecas não secariam
penduradas ao lado das minhas
sem acesso ao comando da minha televisão
com um colchão conformado ao seu corpo
numa outra morada
ressonando fora do alcance dos meus ouvidos
com separação de talões de supermercado
quere-lo intenso e inteiro por um instante
mantendo a soberania dos territórios
amá-lo muito mas menos que a mim própria

portishead - kissing the day.mp3 - Portishead

05 junho 2008


valham-me os dedos em pinça
a cavalo no nariz
vai descer, vai descer
dê à manivela ascensorista
no sentido descendente
tenho os ouvidos entalados
por quilos de silêncio
espezinhado sob a superfície
abro os dedos dos pés
sem a atenuante de membranas
vou sem torpedos
num submarino amarelo
yé-yé
campos e campos
de morangos encharcados
com uma cor mesmo a calhar
yé-yé

31 maio 2008

eu hei-de amar um magarefe


vou cortejar o homem do talho
adular-lhe a inclinação carniceira
beijar-lhe as mãos sanguinárias
para que quando tudo termine
como da anatomia do porco
me extirpe o apêndice cardíaco
em piedosa profilaxia

19 maio 2008



por vezes apetecia-me
uma janela craniana
uma corrente de ar
a atravessar-me o espírito
ou um último acto em japonês
de visceral honra por não ser
quimicamente correcta
por não me bastar com soluções
de 20 mg ao pequeno almoço

12 maio 2008





enchíamos as mãos
das mãos um do outro
transbordavam dedos
e olha agora
como pendem as minhas
sem cruzamento de linhas
incapazes de temperaturas
empoladas de vácuos
é talvez culpa
do calendário

06 maio 2008

no parque - esboço

velhos à janela
de respiração alterada
por mães que pululam no parque
atrás de bolas
atrás de filhos
morcegos dormentes

deus incógnito

fosses tu Tomé
e entrasses de dedo incrédulo
peito meu adentro
e seriam meus
os joelhos no chão
os cabelos limpando-te
os rasgos do caminho
e ser-te-ia de direito
o adorar-te
incógnito

29 fevereiro 2008

lá fora a música toca
potentes altifalantes empurram-na
directamente para o estômago
onde se mescla com outras canções
ouvidas outrora a teu lado

23 fevereiro 2008

surpresa

tolhe-me os gestos a memória
e a vertigem de resistir
à esponja do tempo
de ainda virarem as entranhas
do avesso
as horas idas felizes
rodeadas de braços quentes