11 novembro 2009

ele

uso agora a terceira pessoa
por distanciamento do eu

26 outubro 2009

sábios são os pássaros da minha rua
que obedecem apenas ao sol e à lua
- assim, em verso
mesmo que a natureza não rime
ainda que estivesse
de barriga honrdamente aberta
seria ininteligível
a afirmação visceral
incapaz a espuma sanguínea
de dissolver manchas
mesmo que um último grito
orgânico ecoasse
seria incompreensível
a sua suja gramática

Setembro
repara como acordes
de uma canção longínqua
se esgueiram por entre
as brechas da memória
e de repente
é dezembro à beira-mar
e as estradas por rasgar
não te levaram ainda
para destinos perdidos
numa existência portátil
entre desterro maldito
e transumância libertadora
e o não ser capaz
de ouvir os acordes até ao fim
mostra a memória
que me força à surdez

Junho

16 outubro 2009

sons na rádio fazem-me
ter vontade de amar
mas nenhuma manhã nasceu
ainda ignoro que guarda
no ventre a noite
digo no entanto
da única forma que sei
que arados foram
teus dedos no meu corpo

28.06.09

29 junho 2009

wellcome to the freak show

sou a mulher barbuda
a anã, a amputada
perdi mais braços
do que os que tinha
faltam-me as pernas de andar
prendada me vou cosendo
após cada orgão extirpado
é o fado da fada do lar
emparedar-se-lhe a pele
abrigarem-se sob a língua
hóspedes breves e líquidos
que se evaporam
aos primeiros raios da manhã

25 junho 2009

nocturno

embrulha-me a noite num casulo
onde chegam longínquas vozes
cantares de insectos nocturnos
ao longe rasgões de fogo
e a borboleta em que nunca me torno
nem quando pairam beijos no ar
(se é que há beijos a pairar)
de mim só se vêem os ombros
quando se inclinam cabeças
de choro a madurar
e fica a boca por beijar

20 junho 2009

nem o sol, nem a azáfama dos dias
conseguem evitar as palavras
já vezes sem conta usadas
para lavar recordações
volto ao sentimento tantas vezes descrito
onde se juntam todos os fins
que na minha história são tantos
sou eu própria sempre por terminar
maldigo a costela de adão
a espetar-se-me no peito
oxalá fossem suficientes
as pontas dos meus cabelos
para impedir a queda
inevitável quando as penas
sobrecarregam os braços
já não alados, desencontrados
daquilo que chamam céu

18 junho 2009

oiço os bichos na noite
quando a supremacia humana adormece
e vozes com códigos próprios entoam
avisos, queixumes, regozijos
quando a vivência subalterna
adquire um espaço público
ainda que cercado ou acorrentado

27 maio 2009

Chain

se há músicas que se tornam
bandas sonoras de um momento
a desta alvorada dentro da noite cerrada
acompanha o teu olhar que sem saberes
viria a fixar-me numa interrogação
num desafio o corpo deitado
a mão pousada os cabelos
à solta pela coberta
talvez só pose arrebato de fotogenia
mas gruda-se na memória

25 maio 2009

autópsia

preparo a banca que quero imaculada
as mãos desinfectadas e a língua
lambendo rasga o tórax
exponho o orgão no alvo móvel
o músculo de que o sentir é feito
desconheço o código morse
das suas batidas só sei que ecoam
não decifro mais que corporeidade

18 maio 2009

páscoa privada

finco os dedos nos cantos do livro
como se agarrasse as saias da mãe
sei que vou cair ao subir a escada
e tornar-me exposta à voracidade
do teu olhar que logo após desviarás
e embora aceite os teus braços
é só para deles me retirar expiada
a culpa por inortodoxos meios

por trás do sorriso

por trás do sorriso quem vê
as horas mudas murchando
quem tem longitude de braço
para contornar tanto vazio
que olhos suportam tanto cansaço
o brilho que se vai tornando baço
a lucidez implacável dos joelhos
caídos no chão e as mãos
que não se juntam em prece
descrentes do céu e do chão

que se me incendeiem as palavras

que se me incendeiem as palavras
que fiquem no seu estado bruto
sem eufemismos nem pejo
assumindo misérias e desejos
libertas das ilusões que dão asas
todas feitas de penas
sou chã e verdadeira

tell me why i don't like fridays

hoje é sexta-feira e dias vazios se aproximam
os móveis crescem, nas janelas não se passa nada
só para os bichos em idade de independência
é o calendário indiferente, regulados como são
pelo orgão mais premente no momento

10 maio 2009

cidade indizível

é tua a cidade
o rio que do alto me mostráste
as ruas pontuadas de casas
que outrora habitáste
sigo por dois caminhos
um pé sozinho à frente
outro acompanhando-te atrás
os olhos esses orgãos
de ver e de mostrar
não ocultam o rasto
de passos que sincronizámos
arrítmicos agora
descompassando-me o peito
continua verdade
aquilo que não te disse

07 maio 2009

às vezes as noites rebentam
pelas costuras e não sei
que fazer com os farrapos
restos de mim sobre a cama

22 abril 2009

vago lugar

também a mim apetece dizer que és tu
o dono da minha anatomia
não há nenhum compasso
cardíaco
ao qual seja estranha a tua tonalidade
cada poro como amanhecedora flor
se abre ao calor do teu corpo
que ainda uso na memória
assoberba-me
a certeza inequívoca do meu amor
perdido algures
entre os passos do último passeio
e como ferreamente me agarro
ao sentimento
que em mim é tudo
quanto ficou de ti

07 abril 2009

ao cortares rente o futuro
atiráste para um tempo
só de memória todo o acontecido
sentenciando-o à mesma matéria
inconsistente dos sonhos
dei-me conta ao limpar com o guardanapo
de que tinha sobras de beijos
num dos cantos da minha boca
restos caducados do meu gosto de ti

18 março 2009

que farei agora com esta papa
de músculo no meu peito

17 março 2009

temia este momento a sós
do depois de tudo
do depois de mais um nada
quando se te entreabrirem os lábios
para onde me projectarão
restar-me-á ainda consistência
ou restarei indefinida e pretérita
em gramática amorfa

domésticas tartarugas

vejo-as àquelas mulheres
nas pegajosas divisões
da casa impedidas de sair
pela viscosidade dos papéis
de macho e fêmea
e mesmo agora que o feminino
se dá já fora de portas
para quem tem pesada memória
serão sempre tartarugas
na distinção dos géneros
sob o selvagem apelido
de domésticas

09 março 2009

Cardiologia

I showed my heart to the doctor: he said I just have to quit.
Leonard Cohen

Abri o meu coração para o médico, gráficos
atropelando as batidas do sangue- o médico disse
que embora os exames
não mostrassem indícios
havia solidão, ele mostrou o perigo
de se ter um amor maior do que a idade
a que podemos chegar Por fim
mostrou-me como trabalha
ainda o sopro divino.

J. T. Parreira

07 março 2009

como uma valsa

não há muito que dizer de uma valsa
é sempre um dois três rodando rodando
o sítio sempre o mesmo
tonturas vertigens de início
ritmo automático depois
separação dos pares vénia
e adeus

08 fevereiro 2009

espeleologia da carne

fosse eu espeleóloga na tua boca
pelo teu esófago abaixo
e não encontraria resposta
deserta a língua apesar do mar
de saliva
sou já medidora-mor de distâncias
em fracções de silêncio
sei
o que dizes não dizendo

10 janeiro 2009

descaradamente copiado do blogue casadeosso, que me tolere o autor o ponto de ousadia a que chegou a admiração

«vinha pedir-lhe amor, como se fosse um pouco de arroz ou assim. é porque também precisaria de pouco. a mim qualquer coisa me basta e vindo de si, juro-lhe, o vir de si já seria mais do que suficiente. não me considere disparatado. pode ser um disparate o que faço, mas é de um juízo grande tudo o que fazemos para ir de encontro ao coração quando o coração está certo»

08 janeiro 2009

declaração suave

e se tenho saudades tuas
se gosto do teu ombro
cortando legumes ao lado do meu
se me apazigua a tua vigília
quando o meu sono se acaba
se se me excitam as papilas gustativas
por ser a comida servida pelas tuas mãos
se me falam as ruas da cidade
por se acompanharem do ritmo dos teus passos
se ganha brilho estelar o meu corpo
com a proximidade da tua pele

06 janeiro 2009

tenho dois ouriços do mar
dois fragmentos de algas
vegetais alvéolos
de respiração marítima
como dote duas mãos
capazes de colher inutilidades
aos meus olhos tontos
as únicas que importam

(in)sana

e a hora veio
em que me liquidifiquei
escoando-me da cama
até à sanitária foz
dos esgotos
houvesse uma gloriosa central
de requalificação das águas
capaz de reciclar-me o sangue das veias
e poderia talvez retomar
a circulação eficiente
dos vivos
em vez disso perco-me
de cada vez que vou ao mar
desagrego-me em partículas salgadas
ambicionando ser tomada
no bico das aves marítimas
e abastecer-lhes os voos
para que não importasse
a longitude dos meus braços
evaporo-me agora
com o calor central da casa
escorro pelas frestas do soalho
e quando acordares
estarei de ossos encharcados
pergunto que abraço teu
me circundará então

02 janeiro 2009

Não, não sou eu, são os meus ouvidos que querem escutar-te, os meus olhos que esperam ver-te, a minha pele que senta a falta do teu calor.
Não sou eu, é o meu peito que deseja encaixar-se nas tuas mãos, as minhas pernas que anseiam alinhar-se com as tuas, a minha boca que tem vontade de beber-te a saliva.
Não sou eu, é tudo em mim a sentir saudades.